Shakespeare – guia de leitura

Minhas impressões na trajetória de leituras das peças de Shakespeare

No início deste ano de 2017, decidi ler as principais peças de Shakespeare por um motivo simples. Eu tinha um desejo de saber o que os maiores gênios da literatura universal têm a nos ensinar sobre as tramas e os sentimentos humanos, e de conhecer suas obras. Mas quando eu pensava em Dom Quixote, Os Miseráveis, Crime e Castigo, e percebia que, além de serem obras enormes, necessitavam de uma dedicação especial para compreendê-las, percebi que ainda não era tempo de lê-las, pois estava correndo com outras tantas leituras.

Então me lembrei das grandes peças de teatro, e claro, de William Shakespeare, que é considerado o maior dramaturgo de todos os tempos, o maior escritor em língua inglesa e um dos maiores escritores da literatura universal. E me lembrei que suas peças foram escritas para serem encenadas em mais ou menos duas horas. Calculei, de modo bem pragmático, que eu poderia ter acesso ao melhor da literatura universal lendo as peças do bardo inglês em uma única noite, ou em no máximo uma semana.

Deu certo. Eu sei que o pensamento foi pragmático demais e simplista demais. Uma única obra de Shakespeare exige ser lida com mais cuidado e atenção. Mas estava bom pra mim. E assim fiz as primeiras leituras das obras abaixo. Espero continuar lendo mais obras em 2018, e assim vou acrescentando mais obras neste post. Mesmo que, para 2018, espero iniciar uma nova trajetória, sobre a qual farei uma nova postagem – das tragédias e comédias gregas, mas aí é outra história.

Quem foi o bardo inglês

William Shakespeare, o maior de todos os autores ingleses

William Shakespeare nasceu em 1564 e morreu em 1616. Nasceu e morreu em Stratford_upon-Avon, no condado de Warwick, na Inglaterra, mas produziu a maior parte de suas obras em Londres, onde viveu a maior parte da vida profissional.

Casou-se com a aldeã Anne Hathaway (sim, é o mesmo nome da atriz americana) e com ela teve três filhos. Em 1586, saiu do condado de Warwick para viver em Londres, onde iniciou a carreira no Globe Theatre, começando com funções bem subalternas, depois tornando-se autor e finalmente dramaturgo.

Elisabeth I e o período elisabetano

É interessante notar algumas coisas quando se lê as peças de Shakespeare. O dramaturgo viveu debaixo do reinado de Elisabeth I. Esse período, chamado de período elisabetano, é considerado a era de ouro da história inglesa e o ápice da renascença no país. Nesse movimento,  floresceu o teatro inglês, ao qual Shakespeare foi um dos expoentes do movimento e ficou muito rico por causa dele. Também, neste mesmo período, florescia as navegações de Francis Drake.

Mas é importante lembrar também que o pai de Elisabeth foi aquele Henrique VIII que fundou a Igreja Anglicana e foi o responsável pela Reforma Protestante na Inglaterra. Aliás, o próprio Shakespeare escreveu uma peça homônima sobre o rei. Sabemos que o período de Henrique VIII foi turbulento para os protestantes e católicos ingleses e ainda pior algum tempo depois, quando a Bloody Mary levou a nação ao Catolicismo novamente e queimou alguns protestantes. Elisabeth I sucedeu a rainha megera e trouxe a Inglaterra novamente ao protestantismo, trazendo um período relativo de paz. Apesar disso, foi no período de Elisabeth I que os puritanos chegaram de Genebra, fazendo severas críticas ao anglicanismo e à política de tolerância da rainha.

Foi nesse período de Elisabeth I no trono, de Francis Drake nos mares e dos puritanos contra a Catedral da Cantuária em que Shakespeare escreveu suas obras.

A obra de Shakespeare

Shakespeare deixou mais ou menos 40 peças, entre comédias, tragédias e dramas históricos; e mais de 150 sonetos. Sua produção teatral normalmente é dividida em quatro fases pelos estudiosos:

Na primeira fase, que vai de 1590-1595, ele produziu, entre outras, as peças “Henrique IV”, “Ricardo III”, “A Comédia dos Erros”, “A Megera Domada”, “Romeu e Julieta” e “Sonho de uma Noite de Verão”, predominando os dramas históricos e as comédias.

Na segunda fase, que vai de 1596 a 1600, as principais obras produzidas foram “O Mercador de Veneza”, “Júlio César”, “As Alegres Comadres de Windsor”, “Muito Barulho por Nada” e “Henrique V”.

Mas é a terceira fase aquela que é considerada o seu momento áureo, quando produziu suas obras-primas. Foi entre 1601 e 1608 que escreveu “Hamlet”, “Tróilo e Créssida”, “Tudo Está Bem Quando Acaba Bem”, “Medida por Medida”, “Otelo”, “Rei Lear”, “Macbeth”, “Antônio e Cleópatra” e “Coriolano”. Neste período predominam as tragédias, tais como Hamlet, Macbeth e Rei Lear, que se tornaram as mais aclamadas obras do bardo.

Em sua última fase, entre 1609 e 1612, escreveu principalmente “Henrique VIII” e fechou as cortinas com “A Tempestade”, considerado o seu testamento literário.

Por muitos estudiosos, Shakespeare redefiniu as paixões humanas, e tudo o que se produziu depois dele têm as obras dele como referência. As peças são conduzidas por tramas ligadas a paixões turbulentas como a inveja, o ciúme, o desejo pelo poder, o ódio, mas também por sentimentos puros como a amizade, o amor juvenil e a relação entre pais e filhos.

Não é à toa que, séculos depois, suas histórias continuem tão atuais e sejam constantemente sendo revisitadas na televisão, no cinema e no teatro.

Minhas impressões gerais

Seguem algumas simples impressões gerais sobre as obras que li:

  • Quando você lê as peças, você tem a constrangedora impressão que nada mais foi produzido de novo desde então. Depois de poucas peças lidas, parece que todas as combinações usadas hoje já estão lá. O casal apaixonado, o casal ambicioso, a dupla de amigos, o homem avarento, as filhas ambiciosas de um homem rico, o homem ciumento e violento etc.
  • O fio condutor das peças normalmente é alguma grande paixão humana: o ciúme, a ambição, a amizade etc. A história acaba se tornando paradigmática desta paixão.
  • Em quase todas as peças, encontrei a frase escrita exatamente ou semelhante a: “Eu sou um joguete do destino“. Inclusive, essa frase é dita por Shakespeare, em seu filme “Shakespeare Apaixonado“.
  • Shakespeare utiliza de muita intertextualidade com a Bíblia.
  • A trama não é tão empolgante quanto ficção moderna. O fato de ser uma peça de teatro também prejudica a compreensão (vale a pena assistir algum filme ou ler uma sinopse da história antes de ler). O que é mais valioso na obra é a linguagem e a maneira como o personagem descreve algum sentimento ou alguma ideia que estava dentro de nós mas ainda não havia sido enunciada. Às vezes você lê e fica pensando: “Será que ele quis dizer isso? Não é possível… isso parecia estar tão guardado dentro de mim… como ele conseguiu ver isso?”
  • Se você for ler uma peça, prepare-se: é imprescindível ler a peça com boas traduções. Uma tradução ruim vai estragar completamente a obra pra você. Não seja manobrado por edições baratas. Recomento os livros da L&PM Pocket Books, indicados abaixo, pois são preços bem econômicos, e com traduções primorosas, com a de Millôr Fernandes. Além do mais, eu ganhei bastante lendo a sinopse e alguma resenha antes de ler. Assim, eu pude focar minha leitura para ficar atento ao que é mais precioso naquela obra.

Finalmente, as sinopses e minhas impressões específicas das obras lidas a seguir.


A tempestade

O duque de Milão Antônio, que havia usurpado o ducado de seu irmão Próspero, lança-o ao mar, junto de sua filha Miranda. Mas Próspero e a filha sobrevivem e vão viver em uma ilha. A peça se passa anos depois, quando a filha já é moça e Próspero, com auxílio de magia, prepara a vingança ao irmão e o retorno ao ducado através do casamento da filha.

“Magia de Ariel ao comando de Próspero”, William Hamilton, 1801

A peça começa quando Antônio, o rei de Nápolis Alonso, o príncipe de Nápolis Fernando, e o irmão do rei, Sebastião, entre outros, naufragam após uma tempestade mágica soçobrar o barco, e eles acabam como náufragos na ilha de Próspero. Daí a peça segue com três núcleos: um núcleo cômico, um dramático e um romântico. No núcleo cômico, Estefânio e Trínculo, náufragos do navio do rei, resgatam a cerveja do navio e, juntos do monstro Calibã, e bêbados, planejam usurpar o poder de Próspero da ilha. No núcleo dramático, Antônio e Sebastião aproveitam a estadia na ilha para planejar a morte de Alonso e tomar o reinado de Nápolis. Já no núcleo romântico, Próspero alimenta o romance entre o príncipe Fernando e sua filha Miranda.

“A Tempestade”, a última peça de Shakespeare, encenada em 1611, é para alguns uma de suas principais obras. A peça é uma tragicomédia sobre vingança e reconciliação, e sobre a busca pelo poder. Além do mais, a relação de Próspero com a magia é uma forma genial de metalinguagem encontrada pelo dramaturgo para falar sobre si mesmo e sua obra artística. Alguns críticos contemporâneos também consideram essa obra como uma crítica bastante precursora do colonialismo inglês, com base no relacionamento entre Próspero e Calibã.

Esse é um dos trechos mais conhecidos de A Tempestade:

“Tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Nós somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”

“Estefânio, Trínculo e Calibã dançando”, Johan Ramberg

No final da peça, há um emocionante epílogo com uma fala de Próspero, que alguns creem ser a despedida do bardo inglês da dramaturgia.

Essa foi a primeira peça que li esse ano. Li ela numa tradução ruim, e sem ler nenhum resumo ou conhecer a história. Por isso, minha leitura foi bastante prejudicada. Mesmo assim, foi possível perceber algumas coisas bem interessantes. Sem ter lido nenhuma crítica anterior, foi possível perceber essa relação que Shakespeare faz com as artes mágicas de Próspero com o trabalho do artista. Ao ler, eu pensava: “puxa, será que ele está falando sobre isso?”, e só fui confirmar depois, e reverenciei a genialidade do autor.

Além do mais, como eu já conhecia mais as suas tragédias, me surpreendi com o final conciliatório, e mesmo cheguei a achar emocionante a vitória do perdão sobre a vingança.

Quanto à comédia em torno de Calibã, não a pude aproveitar. Não sei se pela tradução ruim, ou se pelo humor datado, não foi tão proveitoso. Deu para perceber que o humor é bem pastelão, tanto no núcleo de Calibã quanto no núcleo dos reis e duques.

O Rei Lear

Goneril e Regan, de Edwin Abbey, 1902

A história começa com a insensata decisão do rei da Bretanha Lear de partilhar seu reino entre suas três filhas a partir de demonstração de amor feito por elas por intermédio de palavras. O reino seria partilhado na medida do amor demonstrado por elas em palavras. Suas duas filhas, Goneril e Regan, não poupam palavras bajuladoras, mas a filha Cordélia, conhecendo a falsidade das irmãs, é bastante econômica nas palavras. Por isso, o rei decide entregar o reino às suas duas primeiras filhas e a deserdar a terceira. O rei da França se apaixona ainda mais pela sinceridade de Cordélia, e a leva consigo. Já Lear, após a partilha, passa a viver com as duas filhas, alternadamente.

Acontece que as duas filhas, depois que receberam a herança, passam a destratar o pai, e a tal ponto chegam, que o expulso do reino, junto de um bobo da corte e do duque de Kent, disfarçado de Caio. Após uma terrível tempestade, Lear começa a enlouquecer.

Num outro núcleo, o conde de Gloucester é enganado pelo filho bastardo Edmundo, que o coloca contra o filho legítimo Edgar. Com medo do irmão bastardo, Edgar se disfarça de mendigo e vai viver na floresta para se proteger. Na sequência, Edmundo trama contra o próprio pai, punindo-o com a cegueira e expulsando-o do reino também.

“Lear com Cordélia nos braços”, James Barry, 1786

Nisso, encontram-se Gloucester, o rei Lear, cada vez mais louco, e Edgar disfarçado. E Kent, também disfarçado, conduz a todos até os exércitos franceses, onde o pai se encontra com a filha rejeitada, Cordélia. Nesse momento, o rei recupera a sanidade, e há reconciliação entre o rei e a filha.

Regan e Goneril desejam se casar com Edmundo, que já é o comandante dos exércitos bretões. No entanto, Goneril é ainda casada, e a irmã, viúva. Por isso, Edmundo casa-se com a viúva, mas a irmã a leva à morte por envenenamento.  Depois suicida-se.

Por sua vez, Edmundo vence os exércitos franceses e torna o rei e a filha Cordélia prisioneiros dele, condenando-os à morte. Edgar e Edmundo duelam, e Edmundo morre. Gloucester também morre. Edgar tenta salvar Cordélia, mas não consegue, e ela morre enforcada. Enlouquecido, Lear morre com a filha nos braços.

Estamos falando de uma tragédia shakesperiana.

“Desgraçado de quem se arrepende tarde demais.”

“A peça “O Rei Lear” foi encenada pela primeira vez em 1606 e hoje é considerada uma das grandes obra-primas da literatura universal. Ela trata de ganância, da loucura, da velhice, da relação entre pais e filhos, de amor e de mentira.

A peça realmente é um delírio de linguagem, e é muito interessante, embora às vezes um pouco confuso o modo como a peça trata a questão da mentira e da verdade, do falso e do verdadeiro, do disfarçado e do revelado, e do amor dito vs o amor demonstrado. Interessante como loucura está ligado à mentira e ao falso, aqui nesta peça. Também é comovente o amor demonstrado pelo perdão e pela compaixão na filha Cordélia. Mas muito duro ao ver que, embora o rei tenha sido perdoado pela filha, seu erro trouxe tudo a perder. Não houve remissão para as consequências de sua tolice inicial.

Um dos pontos altos da peça, com certeza, são as verdades ditas pelo bobo da corte ao rei. As falas do bobo são as mais interessantes.

A seguir alguns trechos da peça que destaquei, embora muitos outros poderiam estar aqui:

“Julgas que o dever terá medo de falar quando o poder se curva à adulação? A honra tem de ser sincera quando a majestade se perde na razão”

“Eis a sublime estupidez do mundo; quando nossa fortuna está abalada – muitas vezes pelos excessos de nossos próprios atos – culpamos o sol, a lua e as estrelas pelos nossos desastres; como se fôssemos canalhas por necessidade, idiotas por influência celeste; escroques, ladrões e traidores por comando do zodíaco; bêbados, mentirosos e adúlteros por forçada obediência a determinações dos planetas; como se toda a perversidade que há em nós fosse pura instigação divina. É a admirável desculpa do homem devasso – responsabiliza uma estrela por sua devassidão.”

“Desgraçado de quem se arrepende tarde demais.”

“Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio.”

“Assim que nós nascemos, choramos por nos vermos neste imenso palco de loucos.”

Otelo – o mouro de Veneza

“Otelo” Alexandre Marie Colin, 1829

Iago aguarda ser promovido a tenente de Otelo, mas quando Otelo, pela amizade, promove a Cássio, Iago começa a planejar sua vingança.

Primeiro, Iago trama para Otelo entregando sorrateiramente o romance do mouro com Desdêmona ao pai dela, Brabâncio. O pai, irado com o romance, acusa Otelo de feitiçaria. Mas o mouro explica o amor de ambos, e é absolvido da acusação.

Depois, Otelo e Desdêmona vão viver como casados em Chipre, e Iago segue com seu plano de vingança. Começa a fomentar em Otelo o ciúme por Desdêmona, fazendo-o acreditar que a esposa o trai com Cássio. Aos poucos, de formas muito traiçoeiras, Iago vai enlouquecendo Otelo com o ciúme, fazendo-o acreditar na leviandade da esposa.

No fim, louco de ciúmes, Otelo asfixia Desdêmona, mas, quando a esposa de Iago revela a Otelo a inocência da esposa, Otelo se mata. Iago, por sua vez, mata a própria esposa.

A tragédia “Otelo – o mouro de Veneza” foi escrita em 1603 e está entre as principais obras de Shakespeare. Embora tendo o ciúme como seu tema principal, muitos veem na peça temas como racismo, xenofobia, inveja entre outros.

Foi em Otelo e na loucura do ciúme que Machado de Assis se inspirou para compor o seu clássico “Dom Casmurro”.

A peça é tensa, terrível, e ficamos aflitos em ver Otelo ficando enlouquecido pela loucura. Quantas vezes não nos envolvemos em situações semelhantes de desconfiança e loucura?

O destaque na peça é Iago, um personagem cruel e astuto, que conhece o coração humano e é capaz de tirar-lhe o que há de pior. Pelo engano, destrói reinos. Muitos são os personagens inspirados nele ao redor dos tempos.

Aqui, alguns trechos que destaquei:

“Quem da bolsa me priva, rouba-me uma ninharia (…) mas quem do nome honrado me espolia, me priva de algo que não o enriquece, mas me deixa paupérrimo.”

“Os ciumentos não precisam de causa para o ciúme; têm ciúme, nada mais. O ciúme é monstro que se gera em si mesmo e de si nasce.”

“É celeste meu sofrimento, pois castiga ao que ama.”

“É contra a natureza dar a morte a alguém por ter amor.”

“Deve a honra viver mais do que a virtude?”

O mercador de Veneza

“Pórcia e Shylock” Thomas Sully, 1835

Bassânio é um nobre empobrecido que procura seu amigo rico mercador Antônio para emprestar 3 mil ducados para uma viagem a Belmonte, para cortejar Pórcia, e conseguir-lhe a herança. Mas o dinheiro de Antônio está vindo em navio no mar. Para ajudar o amigo, Antônio promete ser fiador de Bassânio para um empréstimo junto do judeu Shylock. O problema é que Shylock odeia Antônio por causa do seu antisemitismo e por fazer empréstimos sem juros. Por isso, decide fiar o dinheiro por uma libra da carne de Antônio, caso não entregasse o dinheiro no prazo.

Em Belmonte, Pórcia está sendo visitada por diversos pretendentes a casamento. Por um ardil do pai, para se casar com Pórcia, os pretendentes devem escolher entre um dos três cofres: o de ouro, o de prata ou o de chumbo, cada qual com uma inscrição. Aquele que escolhesse corretamente seria o vencedor.

O príncipe de Marrocos escolhe o cofre de ouro com a inscrição “Aquele que me escolher ganhará o que muitos homens desejam”. Mas dentro do cofre tem somente poucas moedas de ouro e uma caveira, com o célebre verso: “Nem tudo que reluz é ouro”. O segundo candidato escolhe a prata, que diz “Aquele que me escolher ganhará aquilo que merece”. Mas dentro do cofre está a imagem da cabeça de um bobo da corte. Bassânio, que já havia chegado, escolhe o cofre de chumbo e essa é a resposta correta.

Em Veneza, Antonio recebe a notícia de que seus  navios haviam se perdido. Junto disso, a filha Shylock se casa com um cristão, o que aumenta a ira do judeu e seu desejo de vingança. Tendo chegado o prazo, Shylock leva Antonio à prisão.

Bassânio e Pórcia se casam e partem para Veneza para pagar a dívida ao judeu. Quando chegam, participam do tribunal de Shylock contra Antonio. Bassânio oferece o dobro do valor estipulado ao judeu, que recusa, desejando, sim, a carne do cristão. Pórcia, então, se disfarça de advogado para ajudar no julgamento, e aí… Pórcia aponta uma falha no contrato, e salva Antônio.

Essa tragicomédia foi escrita entre 1596 e 1598 e tem como temas a amizade, a ganância e a vingança, Também trata sobre preconceito e hipocrisia.

“Terás mais justiça do que desejas”

Quem lê deve ter percebido que ela inspirou o autor brasileiro Ariano Suassuna na obra “O Auto da Compadecida”.

Essa foi uma das peças mais divertidas que li. Além da comovente história de amizade entre Bassânio e Antônio, e a cumplicidade de Pórsia, há momentos muito divertidos e interessantes, como a da escolhe dos cofres e os discursos Pórcia no julgamento.

Um dos personagens mais interessantes da peça, e talvez um dos mais entre todos os de Shakespeare, é o personagem Shylock. Ele é um antagonista, mas também é um personagem com quem solidarizamos no decorrer da peça, achando quase injusto o que lhe acontece no final. É aquele vilão dúbio, que sofreu bastante nas mãos do herói, e que fracassa em sua vingança.

Segue alguns trechos da peça que separei:

“Não gosto nenhum pouco de palavras justas na mente de um canalha.”

“O amor é cego, e os apaixonados não veem as lindas bobagens que cometem.”

“A misericórdia é uma virtude que não se pode fazer passar à força por uma peneira, mas pinga como a chuva mansa cai dos céus à terra. É duplamente abençoada: abençoa quem tem compaixão para dar e quem a recebe. Poderosa nos poderosos, harmoniza-se com o monarca ao trono melhor que a coroa. (…) é um atributo de Deus e um tributo a Deus, é um poder mundano que se mostra divino… quando a misericórdia vem temperar a justiça. (…) No cumprimento da justiça, nenhum de nós vai encontrar a salvação.”

“Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.”

A megera domada

Petruchio e Catarina, na novela O Cravo e a Rosa

Batista é o pai de duas mulheres, Bianca, a mais nova, e a insubmissa Catarina. Surgem vários pretendentes para Bianca, mas ninguém deseja desposar a megera Catarina. Daí, o pai decide que Bianca só poderá se casar após o casamento da mais velha.

Enquanto isso, chega a cidade o nobre falido Petruchio, um homem de modos rústicos, que deseja arrumar um casamento para se recuperar. Então dois pretendentes de Bianca, um deles chamado Lucêncio, armam para que Petruchio se case com a megera.

Como contraste do casal cômico Petruchio e Catarina, há o casal romântico, Lucêncio e Bianca. O rapaz se finge de professor de poesia para se aproximar da moça.

Após o casamento de Petruchio com Catarina, o marido impõe à moça várias privações e o efeito é que ela se tornou mais submissa que a irmã mais nova.

“A Megera Domada” foi uma das primeiras comédias escritas por Shakespeare, e compartilha com outras de suas comédias o tema do casamento e das intrigas amorosas. Diferente das outras, no entanto, nessa o bardo dedica boa parte à vida matrimonial.

O leitor já deve ter percebido que a peça inspirou o autor de novelas Walcyr Carrasco para escrever a novela “O Cravo e a Rosa”, com Adriana Esteves e Eduardo Moscovis.

Particularmente, essa foi umas das mais fracas que li esse ano. A comédia parece ser datada e, talvez até mesmo por isso, ela é altamente machista, até para mim que não sou tão preciosista com esse assunto.

Seguem alguns trechos que destaquei:

“Vem, madame esposa, senta aqui a meu lado e deixa o mundo girar. Jamais seremos tão jovens.”

“Enquanto eu olhava, curioso, percebi que era amor a própria curiosidade.”

“Vejam como se aliam os jovens para enganar os velhos.”

Hamlet

Enquanto o príncipe da Noruega Hamlet caminha abatido por causa da súbita morte de seu pai, e por causa do repentino casamento de sua mãe com o tio Cláudio, encontra-se com um Fantasma que diz ser o espírito do pai. O Fantasma revela ao filho que foi envenenado pelo irmão Cláudio, que depois tomou Gertrudes como esposa para tornar-se rei da Dinamarca. O Fantasma perturba o príncipe, e pede que prometa vingar-se.

Para manter-se sem suspeitas, o príncipe finge loucura, rejeita sua noiva Ofélia e preocupa sua mãe Gertrudes, que coloca Apolônio, pai de Ofélia, para saber o que se passa com Hamlet.

Enquanto isso, Hamlet ainda suspeita do que disse o Fantasma, e arma uma cilada para descobrir a verdade. Prepara um teatro para ser apresentado à corte, cuja história seria exatamente como aquela narrada pelo Fantasma. Quando a peça é apresentada, o rei sai da sala perturbado, e isso confirma para o príncipe a culpa do rei.

Depois disso, a mãe vai tirar satisfações com o filho, que discute violentamente com ela. No mesmo momento, Apolônio esconde-se no quarto, e Hamlet, pensando ser o tio, apunhala-o e o mata.

Então, por causa da rejeição do noivo e da morte do pai, Ofélia enlouquece. Quando o irmão de Ofélia, Laertes, chega na Dinamarca, e vê o pai morto e a irmã louca, é instigado pelo rei Cláudio a vingar-se de Hamlet, armando um plano para matá-lo. O plano era que Laertes convidasse Hamlet para um duelo em que a espada estaria envenenada. Ao mesmo tempo, ele também envenenaria o vinho que Hamlet bebesse.

Ofélia afoga-se e morre, e é no cortejo fúnebre de Ofélia que a discussão com Laertes acontece. No final, Gertrudes, a mãe, toma o vinho envenenado por engano e morre. Laertes acerta a espada envenenada em Hamlet, e este rouba a espada e o trespassa, e depois acerta o rei Cláudio. Todos os três morrem.

No fim, a Dinamarca é invadida pela Noruega.

O enredo é complexo demais para resumi-lo. Essa é a mais longa das peças de Shakespeare, e sua maior obra-prima, mais complexa e, segundo alguns, perfeita. É uma tragédia, escrita entre 1599 e 1601.

Ela trata de vingança e loucura, e ainda hoje muitos debates têm sido feitos sobre ela, e muitos temas, da sociologia à psicanálise, têm sido extraídos dela.

Essa é uma peça para se ler com calma. E não foi o que fiz. Pude aproveitar apenas a beleza dos diálogos e da linguagem, e passar de joelhos enxutos pelos profundos discursos de Hamlet em seus conflitos éticos.

Em seguida, alguns trechos da peça:

“O medo é a melhor defesa.”

“Sê fiel a ti mesmo.”

“Quando o sangue ferve, como a alma é pródiga em emprestar mil artimanhas à língua!”

“Há algo de pobre no Estado da Dinamarca.”

“Há mais coisa no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia.”

“Ser ou não ser, eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma pedradas e flechadas do destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias. E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer; dormir; Só isso. E com o sono – dizem – extinguir dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita; eis uma consumação ardentemente desejável. Morrer, dormir… Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir no sono da morte, quando tivermos escapado ao tumulto vital, nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa. Pois quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, a prepotência do mando, e o achincalhe que o mérito paciente recebe dos inúteis, podendo, ele próprio, encontrar seu repouso com um simples punhal? Quem aguentaria fardos, gemendo e suando numa vida servil, senão, porque o terror de alguma coisa após a morte – o país não descoberto, de cujos confins jamais voltou nenhum viajante nos confunde a vontade, nos faz preferir e suportar males que já temos, a fugirmos para outros que desconhecemos? E assim a reflexão faz todos nós covardes. E assim o matiz natural da decisão se transforma no doentio pálido do pensamento. E empreitadas de vigor e coragem, refletidas demais, saem de seu caminho, perdem o nome de ação.”

“A melancolia encuba alguma coisa em sua alma que, ao sair, pode ser perigosa.”

“É coisa consagrada. A loucura dos grandes deve ser vigiada.”

“Num amor tão enorme qualquer dúvida assusta, pequenos medos crescem; e o amor, à sua custa.”

“É possível ser perdoado retendo os bens do crime?”

“Na velhacaria destes tempos flácidos, a virtude tem que pedir perdão ao vício; sim, curvar-se e bajulá-lo para que ele permita que ela o beneficie.”

“O rei obeso e o mendigo esquálido são apenas variações de um menu – dois pratos, mas na mesma mesa; isso é tudo (…) um homem pode pescar com o verme que comeu o rei e comer o peixe que comeu o verme.”

“A culpa é cheia de medo escondido que se trai, com medo de ser traído.”

“Tenho em mim alguma coisa perigosa que a tua sabedoria fará bem em respeitar.”

“Louvada seja a impulsividade, pois a imprudência às vezes nos ajuda onde fracassam as nossas tramas muito planejadas. Isso nos deveria ensinar que há uma divindade dando a forma final aos nossos mais toscos projetos.”

Em breve, atualizo com mais leituras aqui.


Que acha de comprar essa linda edição de obras completas de Shakespeare?

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