Esta é a triste história do órfão do interior do Amazonas que tentou a vida como ajudante dos pescadores que tiravam o seu sustento dos igarapés do Rio Negro.
Esta foi uma história que eu mesmo ouvi quando criança, contada por um amigo da família, lá de Manaus.
Conta a história de um garoto órfão de pai e mãe, que para se sustentar já tinha tentado roubar, mas deu o maior azar e acabou levando uma surra do Seu Padeiro, que o pegou com a mão na botija; e que já tinha tentado pedir, mas era muito pouco o que ganhava, afinal o povo ali nos interiores do Amazonas lutava para conquistar o mínimo para si mesmo.
Tentou finalmente o trabalho como ajudante de pescadores. Ganhava pouco – na verdade não ganhava nada, exceto o direito de comer com os pescadores e de dormir no barco para se proteger na noite.
Os pescadores que o aceitaram eram três irmãos, todos casados, todos com filhos para sustentar, mas se esforçaram para ensinar a nova profissão ao garoto.
Saíram em sua primeira viagem para dentro do rio num barquinho pequeno, pouco maior que um carro. Tentaram a sorte na pesca durante todo o dia, mas não pegaram quase nada . Era alta a noite e os pescadores preparavam-se para voltar para a beira, e o menino ajudava a limpar as ferramentas que, infelizmente, tinham se sujado pouco.
– Meu Deus, meu Deus! Lá no rio! Lá no rio! É a cobra grande!
O irmão mais velho estava pálido. Todos conheciam as histórias da cobra grande, de que era tão grande que era capaz de derrubar embarcações como as deles, e fazê-los serem engolidos pelo rio caudaloso e profundo, isso no melhor dos casos. Sabia-se que a própria cobra era capaz de engolir inteiro aquele pequeno barco.
O irmão mais velho aproximou-se dos outros dois tão pálido quanto alguém que a tivesse visto com os próprios olhos que Deus os deu.
– Venham ver… ela está nos espreitando, a peste.
Os três irmãos se aproximaram de mansinho da popa do barco, e viram aqueles olhões brilhantes pouco saídos para fora do leito do rio, como a vigiá-los e a tramar maldades.
Com muito cautela, o irmão mais velho retomou o controle do motor e tentou ziguezaguear para ver se a cobra os deixava em paz. Mas nada. O danado do bicho continuava os acompanhando.
– Que vamos fazer? – desesperou-se o irmão mais novo.
– Estamos todos perdidos! Vamos virar comida de cobra.
O irmão mais velho recuperou a serenidade e buscou acalmá-los:
– Não se preocupem. Vamos pegar o resto do cacho de bananas que trouxemos para o almoço e jogar para a cobra. Isso vai saciá-la e ela nos deixa por essa noite.
Satisfeitos com o plano, assim fizeram. O irmão mais velho, com coragem e presteza, lançou o cacho ao encontro da cobra. Antes mesmo que o cacho caísse nas águas negras e doces, a cobra imensa ergueu sua enorme mandíbula e se pôs para fora do rio. Sua pele escamosa brilhou na noite. Engoliu o cacho inteiro numa única bocada e mergulhou nas profundezas do Negro.
Os irmãos suspiraram aliviados, mas não por muito tempo. Foi o irmão do meio quem a viu dessa vez, e ficou tão em pânico que só soube apontar tremendo.
– Estamos perdidos!
– Vamos morrer!
A cobra grande havia voltado a persegui-los, com aqueles seus olhos quais duas velas mágicas brilhando na noite.
– Acalmem-se. Não se preocupem. Peguem aquele barril que não conseguimos encher de peixes no dia de hoje. Vamos jogar o barril. É uma esperança. Ela engole o barril e fica completamente saciada.
Assim fizeram. O irmão mais velho, dessa vez mais temeroso, lançou o barril. A cobra, novamente, abriu sua bocarra, ergueu-se do rio, brilhou à luz da lua, engoliu o barril antes mesmo que tocasse as águas negras, e depois mergulhou nas profundezas.
Não tiraram os olhos apreensivos do rio, apontando com cautela suas lanternas. O coração dos irmãos parou e suas mãos suaram quando viram que os olhos monstruosos emergiram novamente no rio.
Agora, silêncio era o que expressava o pânico dos três irmãos. Mas os pensamentos dos irmãos pareciam alinhados. Sem muita delonga, os três se voltaram para um pobre porquinho que ia com eles no barco.
– Será uma grande pena perdê-lo.
– Antes ele do que nós!
Dessa vez, foram os três irmãos que ergueram o porquinho, que gritava e se batia como se soubesse o seu fim. Contaram um, contaram dois, no três lançaram o porco na água. Nem ouviram o splash. A cobra o abocanhou com tamanha rapidez que logo já não ouviam mais os gritos desesperados do animal.
Os três irmãos ficaram exaustos e buscaram apoio nos joelhos para recuperarem o ar. Estavam quase dando por resolvido o problema, pensando que aquilo não passaria de uma aventura para ser contada para os filhos. Mas aí os olharam novamente o rio, e seus olhos se encontraram com os da cobra.
Mas não precisaram procurar muito naquele pequeno barco para perceberem que nada mais restava para lançarem ao rio. Sabiam que agora era questão de tempo. Ficaram desnorteados.
Foi aí que aquele menino, que até agora só observava confuso, ergueu o seu dedo para falar:
– Eu não tenho pai nem mãe. Quando pisarmos na beira, não tenho casa para voltar. Não tenho esposa nem filhos esperando que os alimentem. Minha vida vale menos que a de vocês. Lancem a mim para a cobra, e assim cumprirei o meu dever.
O irmão mais velho ralhou com o menino, para que parasse de falar besteira, mas os outros dois irmãos ficaram pensativos.
Os quatro olharam para a cobra, que por sua vez moveu-se tão poderosamente que as ondas do Negro fizeram balançar o pequeno barco de tal maneira que derrubou o menino e o irmão mais novo. Os outros dois irmãos se seguraram nos esteios do barco. O irmão mais novo, caído ao chão, pode ver do leito do rio – a cobra havia aberto levemente sua boca, esboçando seus dentes:
– Vamos morrer! Vamos morrer!
Foi então que o menino insistiu com sua ideia, e dessa vez o irmão mais velho também ficou pensativo.
– Que o nosso Senhor nos perdoe pela vida dessa pobre alma. Mas quem sabe não foi o próprio Senhor quem o colocou aqui para nos salvar…
Os dois irmãos tiraram seus chapéus e o colocaram ao peito, em respeito. Com muita dor no coração, o irmão mais velho ergueu o menino e, titubeando por alguns segundos, mas lembrando-se dos seus filhos que o esperavam para alimentá-los, lançou o órfão na direção da cobra.
A cobra ergueu seus terríveis dentes, saltou sobre o menino e o engoliu como se fosse uma uva. Então, mergulhou com força sobre o rio e desapareceu. Os homens, com as mãos apertando o casco da popa, aguardaram a cobra. Mas ela não voltou.
Os homens voltaram a salvos para a vila e para suas casas, mas com um silêncio fúnebre que os rodeava. Eles contariam por onde passassem da coragem daquele menino órfão que havia dado a vida para que eles sobrevivessem.
Na manhã seguinte, o irmão mais velho saiu muito cedo de casa, para preparar-se para mais um dia de trabalho. Eles não poderiam deixar que a história os abalasse, pois tinham pratos para encher.
Quando aproximou-se da prainha, viu uma movimentação de gente bem na beira e foi logo ver.
Quando entrou na muvuca, viu que as pessoas estavam em volta de uma enorme cobra moribunda entre a areia e as águas.
– É uma cobra grande – diziam.
– Apareceu morta essa manhã…
E o irmão mais velho, surpreso, dizia:
– Sim, ela nos perseguiu à noite, no rio – mas não teve coragem de falar sobre o órfão.
Mas aí aconteceu algo que vocês não vão acreditar. Um pescador da muvuca, armado de um terçado dos bem afiados, desejoso de provar da carne daquela imensa cobra grande, riscou o bucho da cobra, e uma abertura do tamanho de uma janela enorme se abriu.
Todos os curiosos se apertaram para espiar para dentro da barriga. Quando o irmão mais velho viu, caiu para trás.
Estava lá, todos viram. Um órfão, sentado em um barril, comendo uma banana e jogando a casca pra um porquinho.
Foi desse jeito que aconteceu.
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